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A Ética

Por: 30 de setembro de 2019 Sem comentários

Por Zulma Reyo. 

Para falar sobre espiritualidade temos que considerar o mundo subjetivo das pessoas, começando pelo nosso. As experiências do indivíduo se estendem da consciência psicológica autoenvolvente até as respostas sutis que reverberam com uma existência maior. A subjetividade é o nexo da sensibilidade que decodifica estas respostas sutis sem distinguir de onde elas vêm. Representa o ponto preciso onde nossas relações com as outras pessoas e com o ambiente alcançam a maior participação com toda a vida. Nossa interpretação das sensações e das emoções resultantes determina o campo da ética que permeia todas as nossas criações.

A ética não é aprendida. É parte da nossa essência como resposta humana. Existem mandamentos impostos ao comportamento que, no entanto, somente substituem a experiência do contato mais profundo que oferece a compreensão e a compaixão, ingredientes necessários para a expressão genuinamente humanitária.

A série que escrevi em quatro partes sobre os fenômenos das formas-pensamento mostra como construímos nossa realidade pessoal e coletiva segundo as crenças coloridas pelo sentimento. Agora, temos que compreender a qualidade ética das ressonâncias que projetamos ao construir nosso mundo em comum.

É recorrente, no mundo espiritual, falar-se sobre resistência passiva como maneira ética de lidar com o mundo, sem realmente compreender o egoísmo que, muitas vezes, está camuflado nesta atitude. Originalmente, o conceito se baseou em um código restrito à conscientização individual transferida para a expressão social. Em geral, o ocidental não observa nem um nem outro aspecto. O campo energético de influência que emitimos é repleto de medo, orgulho, arrogância e autopiedade que surgem de crenças extraídas da convivência entre as pessoas.

No coletivo, ultrapassamos o limite onde o refinamento ético poderia surgir espontaneamente. Atingidas as proporções monumentais do materialismo míope que alcançamos, a redenção poderá ocorrer a partir da atenção e cuidado individuais, na reeducação subjetiva e na sensibilidade.

Por exemplo, nosso modelo de realidade está baseado em percepções distorcidas, condicionais e sensoriais. Quando o contato com o mundo é tão restrito, não podemos perceber as sutilezas subjacentes que ficam fora das nossas expectativas. A participação social está contaminada por regras e regulamentos, imposições e inversões, enquanto a maioria das sutilezas é ignorada ou considerada irrelevante. A correção para isto implica em reverter o processo, ou seja, dar mais importância para a relação interna com a existência. É natural que estendamos a mesma qualidade de sensibilidade ao nosso círculo imediato.

A ética requer apreciação e a apreciação revela a atividade coesiva da sensibilidade. Se alguma vez nos permitimos ter a experiência da vulnerabilidade com uma criança ou animalzinho, na natureza ou pelo contato com o sol e os elementos, teremos tido a capacidade de sentir e perceber a qualidade da vida, incluindo o tipo de afinidade ou proximidade que sentimos com o outro. Mas, muitas vezes não recorremos à nossa sensibilidade por estarmos movidos pelo impulso, imediatismo e conveniência.

Tudo funciona em uníssono. Quando a pressão e a eficácia nos motivam, congestionamos os delicados filamentos de ressonâncias ao nosso redor com nossas próprias tensões. Para realmente ver, temos que abrir-nos ao que estamos contemplando. Isto quer dizer “vulnerabilizar-se”. Em tal estado, sabemos que temos a capacidade de alterar, modular, desarranjar ou elevar a vida porque estamos agindo em parceria com ela neste momento. Nada tem importância.

Nossos medos e tensões ferem a vida irreversivelmente. Momentos perdidos não podem ser recuperados… quando “tivermos tempo”. Arrepender-se é completamente inútil e a atenção fica presa à autocomiseração ao invés de focalizar o valor espiritual. A ideia de que podemos reformular a vida não é somente infantil, é materialista e estreitamente vinculada à crença de que podemos “comprar” o que seja com encantos, dinheiro ou influência. E que nossa relação com o aspecto divino da vida envolve o mesmo tipo de negociação.

Somos doadores de forma e criadores de valores. Condicionamos a qualidade. A matéria do nosso mundo é a textura coletiva. Como recebemos de acordo com a nossa capacidade de receber, emitimos de acordo com nosso interesse. Ninguém está isento de retribuição. Perpetuamos padrões destrutivos de insensibilidade cada vez que falamos ou deixamos de falar, cada vez que não reservamos tempo para pensar, sentir e responder de acordo com nossa consciência. Cada vez que paramos para sentir espontaneamente, doamos graça à vida. A ética revela a delicada natureza deste mundo. Reflete a qualidade de ressonâncias materiais que emitimos em harmonia com a vida.

Pode parecer estranho, mas causamos danos consideráveis com nossa inatividade quando escolhemos o caminho covarde da fácil escapatória e evitamos confrontos que requerem o uso da força ou da vontade que poderiam resultar em inconveniência para os outros e macular nossa imagem. A ética requer autenticidade e individualidade. Nós nos vendemos à opinião pública e à pressão da sociedade, dos pais e dos nossos semelhantes. É mais cômodo inibir a ação pessoal e deixar que as ondas incomodas da discórdia se voltem para “outra parte”, contaminando mais profundamente as condições ambientais e os corpos da humanidade.

Não é mesmo nada bonito. Não é nada ético. Dizemos que a ecologia somente tem a ver com o mundo físico e ignoramos o fato de que construímos continuamente a realidade com a qualidade pouco apropriada dos nossos pensamentos e sentimentos. Ficamos paralisados pelas sombras ilusórias do medo, pelo legado de mil anos de controle sacerdotal e não fazemos nada para mudar.

A aceitação cega de modalidades de “respeito” pelos interesses e pela privacidade dos outros encobre o medo de confrontação da realidade perigosamente tóxica que fomentamos pela nossa inatividade. Pisoteamos o que para nossa alma é verdadeiro e justificamos nossa covardia vergonhosamente. Enquanto isto, continuamos a apregoar valores que não vivemos.

A ética é a essência da espiritualidade. A espiritualidade começa no momento que abrimos nossos olhos pela manhã. Inclui os processos internos do pensamento e da emoção, assim como a expressão a cada instante. Está presente em cada olhar, no toque e na nossa consideração do ambiente. Estas são muito mais importantes do que as práticas de meditação que não podem limpar a toxicidade que geramos e que nos segmentam ainda mais, dando uma falsa pretensão de espiritualidade. Somente nossa criação ativa de formas-pensamento éticas e a comunicação consciente poderão reverter a degeneração progressiva dos nossos valores. Pensando, falando e agindo eticamente.

De que valem as boas maneiras se não nos comunicamos de verdade a partir da nossa sensibilidade? Como mudar o mundo se não nos damos ao trabalho de ensinar ao outro o que é possível? Ser uma boa pessoa já não pode ser secreto ou anônimo. Aderir a princípios espirituais implica em comunicar a verdade superior em condições agradáveis e, muitas vezes, em condições nem tão agradáveis. Cada um compartilha a responsabilidade, mas nem todos se sensibilizam o suficiente para comprometer-se em reorganizar a realidade imediata que os rodeia.

Temos que nos importar o suficiente para dizer ao nosso irmão ou irmã, mãe, pai ou filho quando estão sendo insensíveis e antipáticos. Ou dizer ao marido que está sendo injusto e míope. Ou dizer à esposa que está sendo manipuladora e egoísta. E desmascararmos uns aos outros das pretensões de sermos santos. Mas, como carregamos muita pressão acumulada, a verdade se expressa envolta em raiva e autopreservação. Totalmente desnecessário. Por isto, é uma boa ideia praticar a verdade a cada momento.

As condições funcionam com o efeito bumerangue. A força que impulsiona o pensamento é a força que retorna. A ética, ou falta dela, é o que condiciona o poder que cria ou destrói de acordo com a qualidade e o grau da nossa intenção, seja em uma consideração distante ou em um envolvimento amoroso.

Tradução: Claudia Avanzi